sexta-feira, 18 de outubro de 2013

São Luís Maria Grignion de Montfort Carta aos Amigos da Cruz




Carta aos Amigos da Cruz
São Luís Maria de Montfort


[...]Que o Espírito do Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta;
 que sua unção seja a tinta de meu tinteiro;
 que a divina Cruz seja minha pena e o vosso coração meu papel!




"Tú que descanso buscas com cuidado,
Neste mar do mundo tempestuoso
Não esperes de achar nenhum repouso,

Senão em Cristo Jesus Crucificado."

Camões



Grandeza do Nome de Amigos da Cruz

“Genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus acquisitionis! ”
Non omnibus datum est nosse mysterium.
Esse mistério não foi dado a conhecimento  de todos.





 
 Christ carrying the Cross Barnardino Luini 16th century

[...]Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso e um herói triunfante do demônio,
 do mundo e da carne em suas três concupiscências.
 Pelo amor às humilhações, esmaga o orgulho de Satanás; 
pelo amor à pobreza, triunfa da avareza do mundo; 
pelo amor à dor, amortece a sensualidade da carne.


 
 Christ falls on the Way of Calvary 1517 Rafaello Sanzio Prado

Um Amigo da Cruz é um homem santo e separado de todo o visível,
 cujo coração está acima de tudo quanto é  perecível,
e cuja conversa está no Céu ;





[...] Um perfeito Amigo da Cruz é um verdadeiro porta-Cristo, ou antes,
 um Jesus Cristo, de maneira que possa, em verdade, dizer: 
“Vivo, jam no ego, vivit vero in me Christus
vivo, mas não eu, é Jesus Cristo que vive em mim”



Weingarten  Missal Cruci



[...]Ouvís o amável Jesus, que, carregando sua Cruz, vos grita: 
“Venite post me: vinde após mim; o que me segue não anda em trevas ; 
confidite, ego vici mundum, tende confiança, eu venci o mundo ”?



Cristo Portacroce  Romanino


Caminha à frente o bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo ensanguentado, e carregando uma pesada Cruz. Apenas algumas pessoas, e das mais corajosas, o seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no meio do tumulto do mundo; ou então, não se tem coragem para seguí-lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes, que necessáriamente é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.


Christ on Cross  Jan Lievens



Há menos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém será lá coroado se não houver combatido legitimamente, segundo o Evangelho, e não segundo a moda. Combatamos, pois, vigorosamente, corramos depressa para atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa!” Eis uma parte das palavras divinas com que os  Amigos da Cruz mutuamente se animam.


 The Holy Trinity  Botticelli


Os mundanos, ao contrário, gritam todos os dias, para animar-se a perseverar em sua malícia sem escrúpulos (25) “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para que nos danássemos; Deus não proíbe que nos divirtamos; Não nos danaremos por isso. Nada de escrúpulos! Non moriemini. etc...”


 Christ carrying the Cross Tiziano Vecellio 1570-75


[...]Lembrai-vos, que nosso bom Jesus nos olha neste instante e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz. Os idólatras cegos zombam de minha cruz como de uma loucura, os Judeus obstinados se escandalizam com ela, como se fosse objeto de horror, os hereges quebraram-na e derrubaram-na como coisa digna de desprezo.
 Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros, que animei com meu espírito, me abandonaram e desprezaram, tornando-se inimigos de minha cruz! - Numquid et vos vultis abire? Quereis, vós também, abandonar-me, fugindo da minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos anticristos: antichristi multi? 
 Quereis enfim, conformar-vos ao século presente , desprezar a pobreza de minha Cruz, para correr após as riquezas? Evitar a dor de minha Cruz para procurar aos prazeres? Odiar as humilhações de minha Cruz, para ambicionar as honras? Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem juras de amor, e que, no fundo, me odeiam, pois não amam minha Cruz; muitos amigos de minha mesa e pouquíssimos amigos de minha Cruz.



 orthodox icon


Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre,
 que encerram toda a perfeição da vida cristã: 
“Si quis vult venire post me, abneget semetpsum,
 et tollat crucem suam, et sequatur me!





“Se Alguém Quiser Vir Após Mim”

“Si quis”, se alguém, alguém, e não alguns, para marcar o pequeno número dos eleitos que se querem tornar conformes a Jesus Cristo crucificado, carregando a cruz. É tão pequeno esse número, tão pequeno, que se o soubéssemos ficaríamos pasmados de dor.
É tão pequeno que não há apenas um em cada dez mil, como foi revelado a vários santos, - entre outros a São Simeão Estilita, segundo narra o santo abade Nilo, bem como Santo Efrém, São Basílio e alguns outros.  É tão pequeno que, se Deus quisesse reuní-los, gritar-lhes-ia, como se outrora pela baca do profeta: Congregamini unus et unus, reuni-vos de um a um, um desta provícia, outro deste reino...


Salvador Dali 1951 Cristo Crucificado


Se alguém quiser...

Si quis vult, se alguém tiver vontade verdadeira, firme e determinada, não pela natureza, o costume, o amor próprio, o interesse ou o respeito humano, mas, por uma graça toda virtuosa do Espírito Santo, que não se dá a todos: non omnibus datum est nosse mysterium. O conhecimento do mistério da Cruz, na prática, só é dado a poucas pessoas. Para um homem subir ao Calvário e aí se deixar pregar na Cruz com Jesus, em sua própria pátria, é preciso que seja um bravo, um herói, um determinado elevado em Deus, que despreze o mundo e o inferno, seu corpo e sua vontade própria; um determinado a deixar tudo, a tudo empreender e a tudo sofrer por Jesus Cristo.
Sabei, queridos Amigos da Cruz, que aqueles dentre vós que não têm esta determinação, andam com um pé só, voam com uma só asa e não são dígnos de estar no meio de vós, porque não são dígnos de ser camados Amigos da Cruz, que devemos amar, com Jesus Cristo, corde magno et animo volenti . Basta uma meia vontade, neste caso, para por, como uma ovelha preta, o rebanho a perder. Se em vosso aprisco já existe uma delas, entrada pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai-a como a um lobo que estivesse entre os cordeiros!





... Vir após mim

 Si quis vult post me venire, se alguém quiser vir após mim, - que tanto me humilhei e aniquilei, que me tornei mais semelhante a um verme que a um homem, ego sum vermis et non homo; após mim, que só vim ao mundo para abraçar a Cruz, - ecce venio ; para colocá-la no centro de meu coração -im medio cordis; para amá-la desde a minha juventude, hanc amavi a juventute mea; para suspirar por ela durante a minha vida, quomodo coarctor? ; para carregá-la com alegria, preferindo-a a todas as alegrias do céu e da terra, proposito sibi gaudio, sustinuit crucem e que, enfim, só me contentei quando morri em seu divino abraço.



The Lamentation of Christ  Agnolo Bronzino 1540-45



Abster-se

“Renuncie a Si Mesmo!” 
Se pois, alguém quiser vir após mim assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! abneget semetipsum, renuncie a si mesmo!

Longe os sofredores orgulhosos, os sábios do século, os grandes gênios e os espíritos fortes, que são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos! Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruido e colhem apenas o fruto da vaidade! Longe daqui os devotos orgulhosos e que levam para toda parte o “quanto a mim”do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” "não sou como os outros" , que não podem suportar que os censurem sem desculpar-se, que os ataquem sem defender-se, que os rebaixem sem exaltar-se!
Tende bem cuidado para não admitir em vossa companhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela, que se queixam de mínima dor, que nunca provaram a crina, o cilício, a disciplina e, entre as suas devoções em moda, misturam a mais disfarçada e refinada delicadeza e falta de mortificação.


 Pietá Michelangelo detail



 Sofrer
“Carregue a Sua Cruz!”

 Tollat crucem suam, que carregue a sua cruz; suam, a dele! Que esse homem, que essa mulher raros, de ultimis finibus pretium ejus  cujo preço toda a terra, de uma extremidade a outra, não poderia pagar, tome com alegria, abrace com ardor e leve aos ombros, com coragem,
 a sua cruz e não a de outro; a cruz que, com a minha sabedoria, fiz para ele em número, peso e medida; sua cruz, a que, com minhas próprias mãos, pus, com grande exatidão, suas quatro dimensões, a saber: sua espessura, seu comprimento, sua largura e sua profundidade ,
 - sua cruz que lhe talhei de uma parte da que carreguei no Calvário, por um efeito da bondade infinita que tenho para com ele;
 - sua cruz, que é o maior presente que possa dar aos meus eleitos na terra; 
- sua cruz, composta, em sua espessura, das perdas de bens, das humilhações, dos desprezos, das dores, das enfermidades e das penas espirituais que devem, por minha providência, chegar-lhe cada dia, até a morte,
 - sua cruz, composta, em seu comprimento, de um certo número de meses ou de dias em que ele deverá ser aniquilado pela calúnia, estar estendido num leito, ser forçado a mendigar, e tornar-se presa das tentações, da aridez, do abandono e de outras penas do espírito; 
- sua cruz, composta, em sua largura, das circunstâncias mais duras e mais amargas, sejam elas causadas pelos amigos, os criados ou os parentes;
 - sua cruz, enfim, composta, em sua profundidade, pelas mais ocultas penas com que o afligirei, sem que possa encontrar consolação nas criaturas que, por minha ordem, voltar-lhe-ão mesmo as costas e juntar-se-ão a mim para fazê-lo sofrer.



 Nossa Senhora das Dores  Arcos de la Frontera Cadiz Espanha




 “Leve-a!”


 “Tollat”, leve-a! E não a arraste, nem sacuda, nem reduza e, ainda menos, a esconda! isto é: leve-a  bem alto na mão, sem impaciência nem pesar, sem queixa nem murmuração voluntária, sem partilha e sem alívio natural, sem envergonhar-se e sem repeito humano.
“Tollat”, que a coloque sobre a fronte, dizendo com São Paulo: “Mihi absit gloriari nisi in cruce Domini nostri Jesu Christi! Que eu me abstenha de gloriar-me de outra coisa que não a Cruz de meu Senhor Jesus Cristo!
Leve-a aos ombros a exemplo de Jesus Cristo, a fim de que essa cruz se torne para ele a arma de suas conquistas e o cetro de seu império: (imperium) principatus (ejus) super humerum ejus .
Enfim, coloque-a, pelo amor, em seu coração, para torná-la numa sarça ardente, que, sem consumir-se queime, noite e dia, de puro amor de Deus.


 The Deposition  Alex Loir 1708-13  British Museum London



A Cruz!

Crucem, a cruz ; que ele a leve, pois nada existe que seja tão necessário, tão útil, tão doce ou tão glorioso quanto sofrer alguma coisa por Jesus Cristo.
 Nada tão necessário para os pecadores!
É preciso que nossos pecados sejam castigados neste mundo ou no outro; se o forem neste, não o serão no outro.
Se Deus os castigar neste munto de concerto conosco, sua punição será amorosa: quem há de castigar será a misericórdia, que reina neste mundo, e não a justiça rigorosa; o castigo será leve e passageiro, acompanhado de atenuantes e de méritos, seguido de recompensas no tempo e na eternidade

 The Journey to Golgotha  Arent de  Gelder 1715


Como somos felizes de poder trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra, passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência! Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais! Ah! Paguem so neste mundo de forma amigável, levando bem nossa cruz!


The Way to Calvary Domenichino 1610


Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último ceitil, mesmo uma palavra ociosa. Se pudéssemos arrebatar ao demônio o livro de morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande “debet” verificaríamos, e como nos sentiríamos encantados de sofrer durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!
É bom, desejar a glória de Deus; mas desejá-la e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e extravagante: necitis quid petatis ... Óportet per multas tribulationes : é preciso, oportet, é necessidade, é coisa indispensável; é preciso que entremos no Reino dos Céus por meio de muitas cruzes e tribulações.


Dirk Bouts Christ crowned with the Thorns (detail)



Para os filhos de Deus!

Gloriai-vos, com razão, de ser filhos de Deus. Gloriai-vos, pois, das chicotadas que esse bom Pai vos deu e há de dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia seus filhos.
 Se não sois do número de seus filhos bem amados, sois - ó que desgraça, que golpe fulminante! - sois, como o diz Santo Agostinho, do número dos réprobos. 
Aquele que não geme neste mundo, como peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro, como cidadão do céu, diz o mesmo Santo Agostinho. 
Se Deus não vos enviar, de tempos a tempos, algumas boas cruzes, significa que já não se preocupa convosco, é que está irado contra vós; olha-vos tão somente como um estrangeiro fóra de sua casa e de sua proteção, ou como a um filho bastardo, que, não merecendo sua porção na herança de seu pai, não merece da parte dele nem cuidados nem correção.



Christ crowned with Thorns Carl  Heindrich Bloch




 Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da cruz é um mistério desconhecido dos Gentíos, repelido pelos Judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus católicos; é, porém, o grande mistério que deveis aprender praticamente, na escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender. Procurareis em vão, em todas as academias da antiguidade, um filósofo que vô-lo haja ensinado; consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão Jesus Cristo que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear este mistério.



Christ carrying the Cross Bergognone 1501




Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande mestre, e tereis todas as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente. É ela a nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e misteriosa, e nossa pedra filosofal, que muda:
- pela paciência, os metais mais grosseiros em metais preciosos,
- as dores mais agudas em delícias, 
- as pobrezas em riquezas,
-  as humilhações mais profundas em glórias. 
Aquele dentre vós que melhor sabe levar a sua cruz,  é o mais sábio de todos.
Escutai o grande São Paulo, que ao voltar do terceiro céu, onde conheceu mistérios ocultos aos próprios Anjos, exclamava não saber e não querer saber senão Jesus Cristo
crucificado.



 Christ carrying the Cross Lorenzo Lotto 1526



Para os Membros de Jesus Cristo!

Sois membros de Jesus Cristo . Que honra! Mas quanta  necessidade de sofrer por causa disto! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça esta escarnecida e coberta de lama no caminho do Cálvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfumes? A cabeça não tem um travesseiro para repousar e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminho? Seria monstruosidade inaudita. Não, não vos enganeis; estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos nem verdadeiros membros de Jesus Cristo Crucificado; faríeis injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário. Ah! meu Deus! quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são meus mais traiçoeiros perseguidores, porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são, de coração, seus inimigos!
Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos, - numa palavra , cruz - porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma cora de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos, sem hesitar, e ponde-a na cabeça, para vos assemelhar em Cristo.



Dirk Bouts Mater Dolorosa ( detail)



Para os Templos do Espírito Santo!

Não ignorais que sois os templos vivos do Espírito Santo  e que deveis, como outras tantas pedras vivas,ser colocadas pelo Deus de Amor no edifício da Jerusalém celeste. Disponde-vos, pois, a ser trabalhados, cortados e cinzelados pelo martelo da cruz; de outra maneira permanceceríeis como pedras brutas que em nada são empregadas, que são desprezadas e repelidas para longe.
 Tende cuidado para não opor resistência ao martelo que vos bate; prestai atenção ao cinzel que vos talha e à mão que vos molda! - Talvez o hábil e amoroso arquiteto queira fazer de vós uma das primeiras pedras de seu edifício eterno e um dos mais belos retratos de seu reino celeste. Deixai-o fazê-lo, pois. Ele vos ama, sabe o que faz, tem experiência; todos os seus golpes são hábeis e amorosos, nenhum é falso, a menos que o inutilizeis pela vossa impaciência.



 The Crucifixion  Francisco Zurbarán 1627





O Espírito Santo compara às vezes a cruz a uma peneira, que purifica o grão da palha e das escórias : sem resistir, deixai-vos pois, sacudir e agitar, como o grão na peneira; estais na peneira do Pai  de família e dentro em pouco estareis em seu celeiro. Outras vezes Ele a compara ao fogo que tira a ferrugem do ferro pela vivacidade de suas chamas; nosso Deus é um fogo consumidor , que pela cruz, permanece numa alma, a fim de purificá-la, sem a consumir, como outrora na sarça ardente . Outras vezes a cruz é comparada ao cadinho de uma forja, onde o ouro bom se afirma  e o falso desaparece na fumaça: o bom sofrendo pacientemente a provação do fogo, o falso erguendo-se como fumaça contra as chamas. É no candinho da tribulação e da tentação que os verdadeiros amigos da Cruz se purificam pela paciência, enquanto que seus inimigos desaparecem na fumaça por causa de suas impaciências e murmurações.


É preciso sofrer como os santos, como Jesus e Maria



 Christ crowned with Thorns Cima da Conegliano




Olhai, meus queridos Amigos da Cruz, olhai diante de vós uma grande nuvem de testemunhas , que provam sem nada dizer, o que vos digo. Vêde, de passagem, o justo Abel assassinado por seu irmão; o justo Abraão estrangeiro na terra, o justo Lot expulso de seu país; o justo Tobias atingido pela cegueira; o justo Jó empobrecido, humilhado e coberto, dos pés à cabeça, por uma chaga.
[Olhai tantos Apóstolos e Mártires cobertos com a púrpura de seu sangue; tantas Virgens e Confessores empobrecidos, humilhados, expulsos, desprezados, que com S. Paulo, exclamam: “Olhai nosso bom Jesus autor e consumador da fé  que temos nEle e na sua Cruz; foi preciso que Ele sofresse a fim de, pela Cruz, entrar em sua glória.
Vêde, ao lado de Jesus Cristo, um agudo gládio que penetra, até o fundo, no coração terno e inocente de Maria, que nunca tivera qualquer pecado, original ou atual. Como me pesa não poder estender-me falando sobre a Paixão de um e de outro, para mostrar que o que sofremos nada é em comparação do que sofreram!




 A Compaixão William  Adolphe Bouguereau



Depois disto, qual de vós poderá eximir-se de levar sua cruz? Qual de vós não voará depressa para os lugares onde sabe que a cruz o espera? Quem não exclamará, com Santo Inácio Mártir: “Que o fogo, o patíbulo, as feras e todos os tormentos do demônio desabem sobre mim, para que eu possa gozar de Jesus Cristo!?”

Mas, enfim, se não quereis sofrer pacientemente e, como os predestinados, carregar com resignação a vossa cruz, levá-la-eis com murmurações e impaciência, como os réprobos. Sereis semelhantes aos que arrastavam, gemendo, a Arca da Aliança . Imitareis Simão de Cirene, que pôs, de má vontade, a mão na Cruz de Jesus Cristo  e que murmurava enquanto a levava. Acontecer-vos-á, finalmente, o que aconteceu ao mau ladrão, que, do alto da sua cruz, caiu no fundo do abismo.



 The Crucifixion  Peter Paul Rubens ( detail)


Não, não, esta terra maldita em que vivemos não torna ninguém bem-aventurado; não se vê  bem neste país de trevas; nunca se está em perfeita tranqüilidade neste mar tempestuoso; nunca se vive sem combates neste lugar de tentação e neste campo de batalhas; nunca se vive sem pontadas nesta terra coberta de espinhos. É preciso que os predestinados e os réprobos levem a sua cruz, quer seja de boa ou má vontade. Guardai este quatro versos:

Escolhe uma só cruz das que vês no Calvário.

Bem saibas escolher! porquanto é necessário

Que sofras como santo, ou como penitente,

Ou como condenado, eterno descontente!

Quer isto dizer que, se não quiserdes sofrer com alegria, como Jesus Cristo, ou com paciência, como o bom ladrão, tereis, mesmo sem o querer, de sofrer como o mau ladrão. Será preciso que bebais, até as fezes, o mais amargo cálice, sem nenhuma consolação da graça, e que carregueis todo o peso da vossa cruz, sem nenhum auxílio poderoso de Jesus Crito. Será preciso mesmo que leveis o peso fatal que o demônio acrescentará à vossa cruz, pela impaciência em que vos lançará, e que, depois de haverdes sido desgraçado na terra, como o mau ladrão, vades encontrá-lo nas chamas.



Cristo Eucarístico Raul Berzosa



Nada tão útil e tão doce

Se, ao contrário, porém, sofreis como o deveis, a cruz se tornará em jugo suavíssimo , que Jesus Cristo carregará convosco; tornar-se-á as duas asas da alma que a levam para o céu; tornar-se-á o mastro de navio que vos fará chegar ao porto da salvação feliz e facilmente.
Levai vossa cruz com paciência e, por esta cruz bem levada, sereis iluminados em vossas trevas espirituais; pois o que não sofre pela tentação nada sabe.
 Levai vossa cruz com alegria e sereis abrasados pelo amor divino, porque ninguém pode viver sem dor no puro amor do Salvador
 Só se colhem rosas entre espinhos. Só a cruz alimenta o amor de Deus, como a madeira alimenta o fogo . Lembrai-vos, pois, desta bela máxima do livro da “Imitação”: 
Quanto mais vos fizerdes violência, sofrendo pacientemente, tanto mais progredireis no amor divino. Nada de grande espereis dessas almas delicadas e preguiçosas que recusam cruz quando delas se aproxima, e que só com discrição procuram uma cruz.



 Cristo na Cruz  Charles le Brun



Trate-se de terra não cultivada, que só dará espinhos, porque não foi sulcada, nem batida, nem removida por um lavrador experiente; trata-se de água estagnada, que não serve para lavar nem beber.
Levai a vossa cruz alegremente e nela encontrareis uma força vitoriosa, a que nenhum dos vossos inimigos poderá resistir e experimentareis uma sublime doçura à qual nada se pode comparar. Sim, meus Irmãos, sabei que o verdadeiro paraíso terreste consiste em sofrer alguma coisa por Jesus Cristo. 
Interrogai todos os santos: dir-vos-ão que nunca provaram festim mais delicioso para a alma do que quando sofreram os maiores tormentos. 




Santo Inácio de Antioquia,
Bispo e Mártir (+ Roma, 107)
Foi o terceiro bispo de Antioquia, sucedendo a São Pedro e Santo Evódio. Já idoso, levaram-no prisioneiro a Roma. Tendo sabido que os cristãos da Cidade Eterna faziam esforços para libertá-lo, escreveu-lhes uma carta célebre, em que dizia que seu mais veemente anseio era ser triturado pelos dentes das feras, como o trigo é moído para se transformar no pão que é apresentado ao Senhor. Sofreu, efetivamente, glorioso martírio no Coliseu, lançado às feras. É considerado um dos mais ilustres Padres Apostólicos, e ele restam escritos de grande valor teológico e incomparável beleza literária.


"Que todos os tormentos do demônio desabem sobre mim!
 dizia Santo Inácio Mártir. 




"Ou sofrer, ou morrer", dizia Santa Madalena de Pazzi. 


"Sofrer e ser desprezado por Ti," 
dizia o bem-aventurado João da Cruz ; 

e muitos outros usaram de expressões semelhantes, como se lê em suas vidas .




orthodox icon Mandylion



Crêde-me, por Deus, meus caros Irmãos: Quando se sofre alegremente por Deus, diz o Espírito Santo, é causa de toda sorte de alegrias  para toda espécie de pessoas. A alegria da cruz é maior que a de um pobre a quem se cumulasse de todas as riquezas; do que a de um camponês que fosse elevado ao trono; do que a de um negociante que lucrasse milhões; que a dos generais após a vitória; que a dos cativos libertados de seus ferros. Imaginai, finalmente, todas as maiores alegrias deste mundo: a de uma pessoa crucificada, que sabe sofrer bem, contém-nas todas e a todas ultrapassa.



Jesus Meets Veronica  Carlo Caliari1580


Nada tão glorioso

 Regozijai-vos, pois, e estremecei de alegria quando Deus vos der por partilha alguma boa cruz, pois o que há de maior, no Céu e no próprio Deus, desce sobre vós sem que o percebais. Que grande presente de Deus é a Cruz! Se o compreendesseis, faríeis celebrar Missas, rezaríeis novenas diante dos túmulos dos santos e empreenderíeis longas viagens, como os santos o fizeram, para obter do Céu este divino presente.

 O mundo a chama de loucura, infâmia, tolice, indiscreção, imprudência. Deixai falar a estes cegos: sua cegueira, que os faz olhar a cruz como homens, e toda deformada, constitui uma parte de nossa glória. Todas as vezes que nos proporcionam algumas cruzes, pelo seu desprezo e pelas suas perseguições, estão a nos dar jóias, a colocar-nos em um trono e a coroar-nos de louros.


 Christ carrying the Cross  Marco Palmezzano 15th century



Que digo? 


S. João Crisóstomo

Nem mesmo todas as riquezas, honras, cetros e coroas brilhantes dos potentados e dos imperadores podem ser comparadas à glória da cruz, diz S. João Crisóstomo ; ela ultrapassa a glória de ser apóstolo e escritor sacro. “Deixaria de bom grado o Céu, se pudesse escolher, -diz este santo homem iluminado pelo Espírito Santo, - para sofrer pelo Deus do Céu . Preferiria os cárceres e as prisões aos tronos do empíreo; não invejo tanto a glória dos Serafins quanto as maiores cruzes. Estimo menos o dom dos milagres, pelo qual se ordena aos demônios, se abala os elementos, faz-se parar o sol e dá-se vida aos mortos, do que estimo a honra dos sofrimentos. S. Pedro e S. Paulo são mais gloriosos em seus cárceres, com ferros aos pés, do que por se elevar ao terceiro céu e receber as chaves do paraíso”.

Daniel Crespi Pieta 1626 

Com efeito, não foi a Cruz que deu a Jesus Cristo “um nome acima de todo nome, a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre, no céu, na terra e nos infernos?” A glória de uma pessoa que sofre bem é tão grande, que no céu, os anjos, os homens e o próprio Deus do Céu a contemplam com alegria, como ao mais glorioso dos espetáculos, e se os santos pudessem desejar alguma coisa, seria de voltar à terra para carregar algumas cruzes.

 Se esta glória, porém, é tão grande mesmo na terra, qual será então a do céu?
 Quem explicará e compreenderá jamais o peso eterno de glória que resultará de um só momento em que levarmos bem a cruz? 
 Quem compreenderá a glória que teremos no Céu por causa de um ano e, às vezes, 
de uma vida inteira de cruzes e de dores?

Seguramente, meus caros Amigos da Cruz, o céu vos prepara para algo de grande, disse-vos um grande santo, já que o Espírito Santo vos une tão estreitamente a uma coisa de que todos fogem com tanto cuidado.



Christo in Chiesa copta strage Egitto (detail)


- Nas Pegadas de Jesus Cristo: ... “E Me Siga!”

É preciso sofrer á maneira de Jesus Cristo.

 Não é, porém, suficiente sofrer: o demônio e o mundo tem, seus mártires; é preciso sofrer e levar a cruz nas pegadas de Jesus Cristo: - sequatur me! que me siga! - ou seja, da maneira que Ele a carregou. E eis, para isto, as regras que deveis seguir:

As quatorze regras


Não procurar cruzes propositadamente ou pela própria culpa.

1º: Não procureis cruzes propositadamente ou por vossa culpa; não se deve fazer o mal para que dele resulte um bem ; não se deve, sem inspiração especial, fazer as coisas de maneira má, para atrair sobre si mesmo o desprezo dos homens.
 É antes preciso imitar Jesus Cristo, de quem se disse que fez bem todas as coisas , não por amor próprio ou por vaidade, mas para agradar a Deus e conquistar a alma do próximo. 
E se  executardes os vossos trabalhos o melhor que puderdes, não vos hão de faltar contradições, perseguições, nem desprezos, que a Divina Providência vos enviará contra vossa vontade e sem vos consultar.

Consultar o bem do próximo.

 2º: Se praticais algum ato indiferente, mas do qual o próximo se escandaliza, ainda que fora de propósito, abstende-vos dele, por caridade, para que cesse o escândalo dos pequenos; o ato heróico de caridade que praticardes nessa ocasião vale infinitamente mais do que aquilo que fazíeis ou pretendíeis fazer.
Se, entretanto, o bem que fazeis é necessário ou útil ao próximo, e escandalizar, sem razão, algum fariseu ou mau espírito, consultai uma pessoa prudente, para saber se o que fazeis é necessário e muito útil ao bem do próximo; e, se ela assim o julgar, continuai e deixai falar, contanto que vos deixem agir, e respondei, em tais ocasiões, o que Nosso Senhor respondeu a alguns de seus discípulos que vieram dizer-lhe que os Fariseus se haviam escandalizado com as suas palavras e ações: “Deixai-os falar. São cegos”.

Admirar, sem pretender atingí-la, a sublime virtude dos santos.


 3º: Apesar de alguns santos e pessoas importantes terem pedido, procurado e, por meio de ações ridículas, atraído sobre si mesmos, cruzes, desprezos e humilhações, adoremos e admiremos apenas a ação do Espírito Santo sobre suas almas e humilhemo-nos diante de tão sublime virtude, sem ousar voar tão alto, um vez que, comparados a essas rápidas águias e rugidores leões, não passamos de criaturas sem coragem e sem força de vontade.


Pedir a Deus a sabedoria da Cruz.


4º: Podeis, entretanto, e mesmo o deveis, pedir a sabedoria da cruz, que é uma ciência saborosa e experimental da verdade, que nos faz ver, à luz da fé, os mais ocultos mistérios, entre os quais o da cruz, e isto só se obtem mediante grandes trabalhos, profundas humilhações e orações fervorosas. Se precisardes do espírito principal , que nos faz levar corajosamente as mais pesadas cruzes; do espírito bom  e manso, que nos faz saborear, na parte superior da alma, as mais repugnantes amarguras; do espírito são e reto, que procura só a Deus; da ciência da cruz, que encerra todas as coisas; numa palavra, do tesouro infinito cujo bom emprego torna a alma participante da amizade de Deus , pedi a sabedoria; pedi-a incessante e fortemente, sem hesitar , sem receio de não a obter, e ela vos será dada, infalivelmente, e em seguida vereis claramente, por experiência própria, como pode ser possível desejar, procurar e saborear a cruz.



Gaspar David Friedrich  le retable de Tretschen 1808 (detail) 



Humilhar-se das próprias faltas, sem se perturbar.


5º: Quando, por ignorância ou mesmo por vossa culpa, cometerdes algum erro de que resulte para vós alguma cruz, humilhai-vos imediatamente diante de vós mesmos, sob a mão poderosa de Deus; e se houver pecado na falta que cometestes, aceitai a humilhação de vosso orgulho.
 Algumas vezes, e até muitas vezes, Deus permite que seus maiores servos, os mais elevados em graça, cometam as faltas mais humilhantes, a fim de humilhá-los aos seus próprios olhos e aos olhos dos homens, a fim de tirar-lhes a vista e o pensamento orgulhoso das graças que lhes dá e do bem que fazem, a fim de que, segundo a palavra do Espírito Santo, nenhuma carne se glorifique diante de Deus.

Deus nos humilha para purificar-nos

6º: Ficai bem persuadidos de que tudo o que existe em nós está inteiramente corrompido  pelo pecado de Adão e pelos pecados atuais; e não apenas os sentidos do corpo, mas todas as potências da alma; e que, logo que o nosso espírito corrompido olha, refletida e complacentemente, algum dom de Deus em nós, esse dom, ação ou graça fica todo poluído e corrompido e Deus dele desvia os seus olhos divinos. Se os olhares e os pensamentos do espírito do homem estragam assim as melhores ações e os mais divinos dons, que diremos dos atos da própria vontade, que são ainda mais corrompidos que os do espírito?
Não é de espantar, depois disto, que Deus sinta prazer em esconder os seus no segredo de sua face , para que não sejam manchados pelos olhares dos homens e pelos seus próprios conhecimentos. E, para escondê-los assim, o que não faz e não permite este Deus ciumento?! Quantas humilhações lhes proporciona!
Em quantas faltas os deixa cair! De que tentações permite sejam atacados, como S. Paulo!  Em que incertezas, trevas e perplexidade os deixa! 
Ah! como Deus é admirável nos seus santos e nos caminho pelos quais os conduz à humildade e à santidade!


Evitar nas cruzes, o perigo do orgulho.

7º: Procurai bem, portanto, eviten crer, como os devotos orgulhosos e cheios de si, que vossas cruzes são grandes, que são provas de vossa fidelidade e testemunhas de um singular amor de Deus para convosco. Esta armadilha do orgulho espiritual é muito sutil e delicada, mas cheia de veneno.
 Deveis crer: 
1) que vosso orgulho e moleza vos levam a considerar palhas como se fossem traves; picadas como se fossem chagas, um rato como se fosse um elefante; e uma palavrinha no ar, - um nada, na verdade, - como se fosse uma injúria atroz e um cruel abandono;
 2) que as cruzes que Deus vos envia são antes castigos amorosos de vossos pecados, - e de fato o são, - que sinais de especial benevolência;
 3) que, seja qual for a cruz que Ele vos enviar, ainda assim vos poupa infinitamente, em virtude do número e da enormidade dos vossos crimes, que só deveis considerar à luz da santidade de Deus, que nada de impuro tolera e que acatastes; à luz de um Deus moribundo e aniquilado de dor, por causa de vosso pecado, e à luz de um inferno sem fim, que merecestes mil vezes e talvez cem mil; 
4) que na paciência com que sofreis há muito mais de humano e natural do que o julgais: provam-no as pequenas mitigações; as procuras secretas de consolação; as aberturas de coração, - tão naturais, - a vossos amigos e, talvez, ao vosso diretor; as desculpas tão finas e prontas; as queixas, ou melhor, as maledicências tão bem urdidas e tão caridosamente expressas, contra os que vos fizeram algum mal; as referências e complacências delicadas para com vossos males; a crença de Lúcifer de que sois algo de grande , etc. 
Nunca terminaria se me fosse necessário descrever as voltas e reviravoltas da natureza, mesmo nos sofrimentos.



Bernardino Luini  Cristo com São.Francisco e São Paulo

Tirar maior proveito dos pequenos sofrimentos que dos grandes.

8º: Tirai proveito dos pequenos sofrimentos e mesmo mais que dos grandes. Deus não olha tanto o sofrimento quanto a maneira por que se sofre. 
Sofrer muito e mal é sofrer como condenado;
sofrer muito e corajosamente, mas por uma causa má, é sofrer como mártir do demônio; sofrer pouco ou muito, mas sofrer por Deus, é sofrer como santo.
Se é verdade que se podem escolher as cruzes, isto é mais certo quanto às cruzes pequenas e escondidas quando nos vêm paralelamente às grandes e visíveis . O orgulho da natureza pode pedir, procurar e mesmo escolher e abraçar as cruzes grandes e visíveis; mas escolher e levar bem alegremente as cruzes pequenas e ocultas só pode ser o efeito de uma grande graça e de uma grande fidelidade a Deus.
 Tirai proveito de tudo, não deixeis perder-se a mínima parcela da verdadeira Cruz, mesmo que seja uma picada de mosca ou de alfinete, a indelicadeza de um vizinho, uma injúria por descuido, a perda de um níquel, uma perturbaçãozinha da alma, um leve cansaço do corpo, uma dorzinha num dos membros, etc. 
Tirai proveito de tudo, breve estareis ricos em Deus. 
Ao menor contratempo que sobrevier, dizei: “Deus seja bendito! -  Meu Deus, eu Vos agradeço”. 

Amar a cruz, não com amor sensível, mas racional e sobrenatural.

9º: Quando vos dizemos para amar a cruz, não falamos em amor sensível, que é impossível à natureza.Distingui bem, portanto, estes três amores: o amor sensível, o amor racional, o amor fiel e supremo; ou, em outras palavras: o amor da parte inferior, que é a carne; o amor da parte superior, que é a razão; e o amor da parte suprema, ou cimo da alma, que é a inteligência esclarecida pela fé.

Deus não vos pede que ameis a cruz com a vontade da carne. Sendo ela inteiramente corrompida e criminosa, tudo o que dela se origina é corrompido e ela não pode, por si mesma, estar sujeita à vontade de Deus e à sua lei crucificadora. 



 Giammbattista Tiepolo  The Agony in the Garden 1747

Eis por que, ao falar dela no Horto da Oliveiras, Nosso Senhor exclama: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!”  Se a parte inferior do homem em Jesus Cristo, ainda que santa, não pôde amar a cruz sem desfalecimento, com mais forte razão a nossa, que é toda corrompida, há de a repelir. 
Podemos, é verdade, experimentar, por vezes, até mesmo alegria sensível pelo que sofremos, como aconteceu a vários santos; mas essa alegria não vem da carne, ainda que nela esteja; vem apenas da parte superior, que se acha tão cheia da divina alegria do Espírito Santo, que a faz estender-se até à parte inferior, de tal sorte que em tal ocasião até mesmo a pessoa mais crucificada pode dizer: 
"Meu coração e minha carne estremeceram de alegria no Deus vivo!"

 Há outra espécie de amor, que denomino racional, e que se acha na parte superior, que é a razão. Este amor é todo espiritual e, como nasce do conhecimento da felicidade de sofrer por Deus, é perceptível e mesmo percebido pela alma, rejubilando-a interiormente e fortificando-a. Este amor racional e percebido, porém, -apesar de bom, e de muito bom, - nem sempre é necessário para que se sofra alegre e divinamente.

 É porque há outro amor, do cimo ou ápice da alma, dizem os mestres da vida espiritual, - ou da inteligência, afirmam os filósofos, - pelo qual, sem experimentar qualquer alegria dos sentidos, sem perceber nenhum prazer racional na alma, é possível amar e saborear, pela visão da fé pura, a cruz que carregamos, muito embora tudo esteja em guerra e estado de alarme na parte inferior, que geme, se queixa, chora e procura lenitivo, de tal sorte que se possa dizer, como Jesus Cristo: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” ou, com a Santíssima Virgem: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a Vossa palavra!” 
É com um desses dois amores da parte superior que devemos amar e aceitar a cruz.



Lady Madonna by Carlo Dolce 17th century



Sofrer toda sorte de cruzes, sem excepção e sem escolha.


 10º: Decidi-vos, queridos Amigos da Cruz, a sofrer toda sorte de cruzes, sem excepção e sem escolha: toda pobreza, toda injustiça, toda humilhação, toda contradição, toda calúnia, toda aridez, todo abandono, toda pena interior ou exterior, dizendo sempre: 
"Meu coração está preparado, meu Deus, meu coração está preparado."
 Preparai-vos, pois, para ser abandonados pelos homens, pelos anjos e pelo próprio Deus; para ser perseguidos, invejados, traídos, cluniados, desacreditados e abandonados por todos; para sofrer fome, sêde, mendicidade, nudez, exílio, prisão, tortura e todos os suplícios, ainda que não os tenhais merecido pelos crimes que vos impuserem.




 Jó
Imaginai enfim que, depois de ter perdido vossos bens e vossa honra, de haver sido lançados para fora de vossa casa, como Jó e Santa Isabel, rainha da Hungria, vos joguem na lama, como àquela santa,



 Santa Isabel, rainha da Hungria

 e vos arrastem por sobre o estrume, como a Jó, todo purulento e coberto de úlceras, sem vos darem ataduras para vossas chagas ou, para comerdes, um pedaço de pão que não recusariam a um cavalo ou a um cão; e que, além desses males extremos, Deus vos deixe à mercê de todas as tentações dos demônios, sem derramar sobre vossa alma a mínima consolação sensível.
Crêde firmemente que esse é o ponto supremo da glória divina e a felicidade perfeita de um verdadeiro e perfeito Amigo da Cruz .


Os quatro estimulantes do bom sofrimento.

 11º: Para ajudar-vos a sofrer bem, tomai o santo hábito de olhar quatro coisas:

1º O olhar de Deus



O Criador  Michelangelo Buonarroti (detail) Capela Sisitina

Primeiramente o olhar de Deus, que, como um grande rei, do alto de uma torre, olha complacentemente e louvando-lhe a coragem, o seu soldado que peleja.
Que olhará Deus na terra? Os reis e imperadores em seus tronos? Muitas vezes Ele os contempla com desprezo. As grandes vitórias dos exércitos do Estado? As pedras preciosas? Numa palavra: as coisas que são grandes aos olhos dos homens? O que é grande aos olhos dos homens é abominação diante de Deus. Que olhará Ele então com prazer e complacência e de que pedirá notícias aos anjos e aos próprios demônios? Um homem que, por Deus, se bate com a sorte, o mundo, o inferno e ele próprio, um homem que carrega alegremente a sua cruz. Não viste na terra uma grande maravilha que todo o céu contempla com admiração?, disse o Senhor a Satanás: “Não viste meu servo Jó”, que sofre por mim?

2º A mão de Deus


Eterno Pai  Veronesse

 Em segundo lugar, considerai a mão deste poderoso Senhor, que permite todo o mal que da natureza nos advém, desde o maior até o menor; a mão que colocou um exército de cem mil homens no campo de batalha  e faz cair as folhas das árvores e os cabelos de vossa cabeça; a mão que, havendo rudemente atingido Jó, vos toca docemente pelo pouco sofrimento que vos envia. Com essa mão Ele formou o dia e a noite, o sol e as trevas, o bem e o mal; permitiu os pecados que se cometem e que vos melindram; não lhes fez a malícia, porém lhes permitiu a ação.



God Father Francesco di Giorgio Martini 1475

Assim, quando virdes um Sémei injuriar-vos e apedrejar-vos, como ao rei Davi,dizei a vós mesmos: “Não nos vinguemos. Deixemo-lo, porque o Senhor lhe ordenou de agir assim. Sei que mereci toda sorte de utrajes e é justo que Deus me castigue. Parai, braços meus: Parai, língua minha. Não ataqueis. Nada digais. Este homem ou esta mulher me injuriam por palavras ou por obras; são embaixadores de Deus, que vêm de sua misericórdia, para exercer vingança amistosa. Não irritemos sua justiça usurpando os direitos de sua vingança; não desprezemos a sua misericórdia resistindo às suas amorosas chicotadas, para que ela não nos reconduza, por vingança, à pura justiça da eternidade.”
Olhai uma das mãos de Deus, que, onipotente e infinitamente prudente, vos sustenta, enquanto a outra vos atinge; com uma das mãos Ele mortifica e com a outra vivifica; rebaixa e exalta, e, com seus dois braços, doce e fortemente, alcança, de um polo ao outro, a vossa vida ; docemente, não permitindo que sejais tentados e provocados acima de vossas forças: - fortemente, secundando-vos com graça poderosa e correspondente à violência e duração da tentação e da aflição; fortemente, ainda uma vez, tornando-se Ele próprio, segundo o diz pelo espírito de sua Santa Igreja, “vosso apoio à borda do precipício perto do qual vos encontrais, vosso companheiro no caminho onde vos perdeis, vossa sombra no calor que vos caustica, vossa vestimenta na chuva que vos molha e no frio que vos enregela; vossa carruagem na fadiga que vos aniquila, vosso socorro na adversidade que vos visita, vosso bastão nos caminhos escorregadios e vosso porto no meio das tempestades que vos ameaçam de ruína e naufrágio”.

3º As chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado



The Crucifixion  Peter Paul Rubens (detail)


 Em terceiro lugar, olhai as chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado. Ele mesmo vô-lo diz: “Ó vós que passais pelo caminho espinhoso e crucificado por que passei, olhai e vêde: olhai com os próprios olhos do vosso corpo e vêde, com os olhos de vossa contemplação, se vossa pobreza, vossa nudez, vosso desprezo, vossas dores, vossos abandonos são semelhantes aos meus; olhai-me, a mim que sou inocente, e queixai-vos, vós que sois culpados!”.
O Espírito Santo nos ordena, pela boca dos Apóstolos, esta mesma contemplação de Jesus Crucificado ; ordena que nos armemos com este pensamento mais penetrante e terrível para todos os nossos inimigos que todas as outras armas. Quando fordes atacados pela pobreza, pela abjeção, pela dor, pela tentação e pelas cruzes, armai-vos com um escudo, uma couraça, um capacete e uma espada de dois gumes , a saber: o pensamento de Jesus Crucificado. Eis a solução de toda dificuldade e a vitória sobre qualquer inimigo.

4º Ao alto, o céu; em baixo o inferno.


Juízo Final  Marten de Vos 1570

Em quarto lugar olhai, ao alto, a bela coroa que vos espera no céu, se carregardes bem vossa cruz. Foi esta recompensa que sustentou os patriarcas e os profetas em sua fé e nas perseguições; que animou os Apóstolos e os Mártires em seus trabalhos e tormentos. Preferimos - diziam os Patriarcas, com Moisés - sofrer aflições com o povo de Deus, para ser feliz com Ele eternamente, que gozar de um prazer criminoso por um só momento . Sofremos grandes perseguições por causa da recompensa , diziam os profetas com Davi.
Somos como vítimas destinadas à morte, como espetáculo para o mundo, os anjos e os homens pelos nossos sofrimentos, como a escória e o anátema do mundo , diziam os Apóstolos e os Mártires com São Paulo, por causa do peso imenso da Glória eterna que este momento de breve sofrimento produz em nós .
Olhemos sobre nossas cabeças os anjos que nos dizem, em alta vos: “Tende cuidado para não perderdes a coroa marcada pela cruz que vos é dada, se a levardes bem. Se não a carregardes bem, outro o fará e vos arrebatará vossa coroa. Combatei fortemente, sofrendo com paciência, dizem-nos todos os santos, e entrareis no reino eterno ”. Ouçamos enfim Jesus Cristo, que nos diz: “Só darei minha recompensa àquele que sofrer e vencer pela paciência ”.
Olhamos embaixo o lugar que merecemos e que nos espera no inferno com o mau ladrão e os réprobos, se, como eles, sofremos com murmurações, despeito e vingança. Exclamemos com Santo Agostinho: “Queimai, Senhor, cortai, talhai e retalhai neste mundo para castigar meus pecados, contanto que os perdoeis na eternidade”!



Pieta z Tubadzina  polish painter National Museum in Warsaw 1450 Poland



Nunca se queixar da criaturas.

 12º: Nunca vos queixeis voluntariamente e entre murmurações, das criaturas de que Deus se serve para vos aflingir. Distingui, para tanto, três espécies de queixas nos sofrimentos.
- A primeira é involuntária e natural: é a do corpo que geme, suspira, se queixa, chora e se lamenta. Quando a alma, como já disse, está resignada com a vontade de Deus, em sua parte superior, não há nenhum pecado.
- A segunda é razoável; é quando alguém se queixa e descobre seu mal aos que podem e devem tratá-lo, como um superior ou o médico. Esta queixa pode ser imperfeita, quando for muito insistente; mas não é pecado.
- A terceira é criminosa: é quando alguém se queixa do próximo para se isentar do mal que ele nos faz sofrer, ou para se vingar; ou quando alguém se queixa da dor que sofre, consetindo nessa queixa e juntado a ela a impaciência e a murmuração.

Receber sempre a cruz com reconhecimento.


 13º: Nunca recebais nenhuma cruz sem beijá-la humildemente e com reconhecimento; e quando Deus, todo bondade, vos houver favorecido com alguma cruz um pouco considerável, agradecei-lhe de maneira especial e fazei-o agradecer por outros, a exemplo daquela pobre mulher, que, tendo perdido todos os seus bens em virtude de um processo injusto que lhe moveram, fez celebrar imediatamente uma Missa, com o  dinheiro que lhe restava, a fim de agradecer a Deus a ventura que lhe era concedida.




The Crucifixion  Pompeo Batoni 1762



Carregar suas cruzes voluntárias.

 14º: Se quereis tornar-vos dignos de receber as cruzes que vos hão de vir sem vossa participação e que são as melhores, carregai outras voluntárias, seguindo os conselhos de um bom diretor.
Por exemplo: Tendes em casa algum móvel inútil pelo qual tendes afeição? Dai-o aos pobres, dizendo: quererias o supérfluo quando Jesus é tão pobre?
Tendes horror a algum alimento? A algum ato de virtude? A algum mau odor? Provai-o, praticai-o, aspirai-o. Vencei-vos.
Amais alguém ou algum objeto um pouco terna e insistentemente demais? Ausentai-vos, privai-vos, afastai-vos do que vos lisonjeia.
Tendes uma natureza muito inclinada a ver? A agir? A aparecer? A ir a algum lugar? Parai, calai, escondei-vos, desviai os olhos.
Odiais naturalmente algum objeto? Alguma pessoa? Procurai-a frequentemente. Dominai-vos.

Se sois verdadeiramente Amigos da Cruz, o amor, que é sempre industrioso, vos fará assim encotrar mil pequenas cruzes, com que vos enriqueceis insensívelmente, sem temor da vaidade, que se mistura tão frequentemente à paciência com que suportamos as cruzes muito visíveis; e porque fostes assim fiéis em pouca coisa, o Senhor vos estabelecerá em muito , como o prometeu; isto é, em muitas cruzes que vos enviará, em muita glória que vos preparará ...




Será este o fim da “Carta”? Decerto poderia esta terminar com este pensamento. O Padre Quérard, historiador de Montfort (1887), entretanto, lamenta que a conclusão dela se haja perdido. Na ausência do manuscrito, é difícil resolver a questão.





Jesus Cristo among the Doctors ( detail) Bernardino Luini




Madonna and Child (detail) Bernardino Luini



“Deus, vendo que somos indignos de receber suas graças diretamente de suas mãos divinas, dá-as a Maria, a fim de obtermos por ela o que ele nos quer dar.“


São Luís Maria Grignion de Montfort



Lendo a Carta é impossível não sentir a presença da Virgem Santíssima


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Isaías 41:10 
não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque eu sou o teu Deus; eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a minha destra fiel.

Isaías 41:13
 Porque eu, o SENHOR, teu Deus, te tomo pela tua mão direita e te digo: Não temas, que eu te ajudo.









[...] Carta aos amigos da cruz – S. Luís de Montfort  … será sempre um número reduzido de cristãos que aceitarão tornar-se conformes a Jesus Cristo Crucificado e carregar a própria cruz. Será sempre um número de tal maneira reduzido que, se o conhecêssemos, morreríamos de desgosto; é um número tão minúsculo que não haverá mais do que um em cada dez mil – fazendo fé em revelações a diversos santos, tais como a S. Simeão Estilita, segundo narra o santo abade Nilo, bem como Santo Efrém, S. Basílio e outros -; enfim, é tão pequeno que se Deus quisesse reagrupá-los, lhes gritaria como fez outrora pela boca de um profeta: “E vós sereis recolhidos um a um” [Is 27, 12], um desta província, outro daquele reino. [...]




Montfort, tal como São Francisco de Assis, tinha um coração apaixonado pela beleza e, em sua gruta de Mervent, cantou deliciosamente a natureza. Não prende, porém, a ela a sua alma: ama-a tão somente na medida em que ela o eleva a una a Deus.


  gruta de Mervent, France



Morreu a 28 de Abril de 1716, com 43 anos,



Montfort, este grande amante da cruz, para quem o maior dos sofrimentos era estar privado de sofrimento, e cuja exclamação “Nenhuma cruz, que cruz!”, proferida num dia de sucesso extraordinário, merece ser acrescentada às belas fórmulas citadas por ele.





“Só Deus é a minha ternura, só Deus é o meu sustentáculo,
 só Deus é todo o meu bem, a minha vida e a minha riqueza».



São Luís Maria Grignion de Montfort






Referências:
http://www.wga.hu/
http://www.scribd.com/doc/41960833/Carta-Circular-Aos-Amigos-Da-Cruz
fotos google
http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Lu%C3%ADs_Maria_Grignion_de_Montfort
http://www.scribd.com/doc/58032839/Carta-Aos-Amigos-Da-Cruz-Sao-Luis-de-Montfort